5.12.09

Onze de dezembro de 2009: o Dia da Derrama

Aércio S. Cunha
Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados
Em 11 de dezembro próximo, entra em vigor o art. 55 do Decreto nº 6.514,
de 22 de julho de 2008, que, entre outros temas, “Dispõe sobre as infrações e
sanções administrativas ao meio ambiente.”
O citado artigo define as penalidades aplicáveis a quem deixar de averbar
e georreferenciar a “reserva legal” a que se sujeitam todas as propriedades rurais:
advertência e multa diária de cinquenta a quinhentos reais por hectare. Na mesma
data entra em vigor outra penalidade ainda mais pesada: o embargo da propriedade
em decorrência de ocupação irregular de áreas de reserva legal (art. 152-A). As
sanções vão além. O inciso IV do art. 20 proíbe o financiamento de bancos oficiais a
quem não satisfizer o requisito ambiental.
O governo tem feito vista grossa ao cerceamento do crédito, exceto no
Bioma Amazônia. A Resolução nº 3.545, de 29 de fevereiro de 2008, altera o Manual
do Crédito Rural (MCR 2–1), “para estabelecer exigência de documentação
comprobatória de regularidade ambiental” além do Certificado de Cadastro de Imóvel
Rural. Essa resolução veda a concessão de crédito, não apenas de instituições
oficiais, mas de qualquer banco, público ou privado. A proibição está em vigor desde
1º de julho de 2008.
O Código Florestal, em seu conjunto, é um exemplo de opção radical pelo
comando e controle sem questionamento do custo ou da eficácia da regulação. Há
pouco que o proprietário rural possa fazer sem autorização prévia do órgão
ambiental. Difícil é encontrar agricultor que não esteja na ilegalidade. Só burlando a
lei eles se mantêm em atividade. Um pecuarista que precisar roçar um pasto terá de
se adequar ao que diz o art. 53 do citado Decreto nº 6.514. Esse dispositivo estipula
multa de 300 reais por hectare a quem “Explorar ou danificar floresta ou qualquer tipo
de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, localizada fora de área de
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reserva legal averbada, de domínio público ou privado, sem aprovação prévia do
órgão ambiental competente ou em desacordo com (autorização) concedida”. Em
vez de mudar o dispositivo, o governo tem preferido deixar de aplicá-lo. Reforça a
ideia de que há leis que não precisam ser cumpridas.
A reserva legal foi outro dispositivo do Código Florestal que “não pegou”.
Transformou-se em caso de desobediência civil. São poucas as propriedades que
têm sua reserva legal demarcada, averbada e georreferenciada. Quando isso
acontece, o mérito – ou a culpa – é do Ministério Público. Diante da resistência dos
proprietários, o governo sempre optou por olhar para o outro lado. Até que o Decreto
nº 6.514/08 estipulou punições e fixou a data – 11 de dezembro – para que
entrassem em vigor: o “dia da derrama”.
O Decreto nº 6.514 transformou as reservas legais em pomo de discórdia.
Fora do Bioma Amazônia, a exigência é esdrúxula. Não se quer dizer com isso que
os demais biomas sejam menos importantes. O que se quer dizer é que a Amazônia,
por suas características, demanda políticas moldadas às condições locais, que não
se aplicam ao restante do País. Reservas legais têm custo elevado, mais do que os
agricultores, em sua vasta maioria, podem suportar, e benefícios questionáveis. A
própria área das reservas – 20% da área total da propriedade para todo o País
excluída a Amazônia – é arbitrária. Em alguns ecossistemas, 20% podem ser
insuficientes; em outros podem ser elevados demais. Tal porcentagem tem mais a
ver com o custo que se admite imputar ao proprietário do que com a ecologia. Em
circunstâncias específicas as reservas trazem benefícios evidentes ao meio
ambiente, mas esses seriam casos especiais. Por que não restringir a exigência a
tais casos? Qual a razão da uniformidade da exigência (os 20%)? – Essas são
perguntas que não se fazem.
Há de se notar que as reservas legais não têm por objetivo apenas
preservar áreas de vegetação nativa; visam à reconstituição da vegetação em áreas
há muito transformadas pela agropecuária. Não se trata, pois, de se preservar um
recurso natural, mas de reverter ao estado “original” áreas que, à custa de pesados
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investimentos e anos de esforço, foram convertidas à agricultura. Na maioria dos
casos, obedecer à lei significa deixar o mato crescer em terra cultivada.
Do ponto de vista legal, há de se distinguirem as áreas transformadas
antes e depois de 1965, ano em que o Código Florestal entrou em vigor. Em
qualquer caso, retirar área do processo de produção equivale a confiscar capital
aplicado no preparo, correção, adubação e conservação do solo, uma 3 proposição
constitucionalmente questionável. Como, todavia, “causas ilícitas não geram
direitos”, só quem investiu em formação de lavouras e pastagens antes de 1965
poderia pleitear o reconhecimento da ilegalidade da exigência da constituição de
reserva legal em suas propriedades. Esse é o caso da maior parte das áreas
agrícolas tradicionais do Sul, Sudeste e Nordeste. Obrigar a criação de reservas
legais em áreas convertidas à agricultura antes de 1965 implica retroação dos efeitos
do Código Florestal de 1965. Surpreende que a exigência ainda não tenha sido
submetida ao teste de legalidade, nos tribunais.1
No Congresso Nacional e na sociedade, as discussões perderam o foco.
Debatem-se temas a respeito dos quais só ficam claros os interesses em conflito. Há
37 projetos de lei sobre reforma do Código Florestal em tramitação na Casa. Na
dianteira, está o PL nº 6.424, de 2005, do Senado Federal, relatado pelo Dep. Jorge
Khoury. A proposição é sujeita à apreciação conclusiva das comissões e falta apenas
o parecer da Comissão de Meio Ambiente. Em raia paralela, corre um projeto de
criação de Código Ambiental (PL nº 5.367/09, do Sr. Valdir Colatto e outros).
Abrange toda a multiplicidade de aspectos da problemática ambiental. Substitui o
Código Florestal por normas mínimas de proteção de florestas e outras formas de
vegetação. Este projeto figura na pauta de uma Comissão Especial, cuja instalação
está prevista para o mês em curso. Nenhuma dessas iniciativas haverá de dar à
questão da reserva legal solução satisfatória às partes em conflito.
Quando confrontados com esses argumentos, opositores da reformulação
do Código Florestal retorquem que, se está ruim com o ele, pior será sem ele. Lutam
1 Há outros casos de desrespeito a direitos adquiridos. Na Amazônia, a ampliação de reservas de 50% para 80% é
um desses. Outro é o da cassação do direito de uso “sob manejo” da reserva.
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para que seja mantido, mas não demonstram o mesmo vigor quando se trata de
aplicá-lo. O argumento pode ser virado de ponta-cabeça. Se a atual abordagem não
está produzindo resultados, melhor procurar outros caminhos.
O instituto da reserva legal é um caso curioso em que o País se torna
refém de uma ideia muito boa, suscitada originalmente no antigo Código Florestal de
1934 (que não utiliza a expressão “reserva legal”). Essa ideia, um tanto piorada, mas
ainda assim compreensível, ganhou expressão legal no Código Florestal (Lei nº
4.771, de 1965). O Código refere-se exclusivamente a florestas nativas, primitivas ou
regeneradas (não a qualquer tipo de vegetação); distingue regiões onde a cobertura
nativa já havia sido substituída daquelas ainda inexploradas, como (à época) o
cerrado; toma o cuidado de indicar o tipo de cobertura florestal a ser protegida em
cada região do País (art. 16, caput e alíneas “a” a “d”); e dá tratamento diferenciado à
bacia amazônica (arts. 15 e 44).
Foram as modificações introduzidas pela MPV nº 2.166-67/2001, nunca
apreciadas pelo Congresso e criadas sob pressão do aumento dos incêndios na
Amazônia, que deturparam a ideia. O Código, modificado pela MPV nº 2.166-67, bem
poderia ser denominado “Código do CONAMA” em homenagem ao autor da minuta
da citada MPV. Apesar de questionável, no mérito, e inaplicável, o instituto das
reservas legais na versão adotada pelo Código modificado em 2001 (o do CONAMA)
é mantido no ordenamento jurídico brasileiro. Dados os parcos recursos tecnológicos
de até poucos anos atrás e a pressão do público nacional e da comunidade
internacional diante do crescimento explosivo dos desmatamentos, com boa vontade,
seria possível justificar semelhante postura. Hoje, não. A maior resistência é a de se
fazer o “dever de casa”.
É esse o cenário do embate.
Lições de uma história da diplomacia brasileira
Na busca de uma solução de consenso para a contenda entre ruralistas e
ambientalistas, a atuação do Barão do Rio Branco na disputa com a Argentina em
torno do chamado Território das Missões é fonte de inspiração. A questão dos limites
entre os dois países tem origem no Tratado de Madri, de 1750, entre Espanha e
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Portugal. Aquele Tratado definira como limites ocidentais do território português o
curso do Rio Pepiri (ou Pequeri), até sua nascente; e de lá, até a nascente do (rio)
“mais vizinho” que desembocasse no Rio Grande de Curitiba (o Iguaçu). Curioso é
que os cursos desses rios (o Pequeri, o mais vizinho e o Iguaçu) só foram
determinados nove anos após a assinatura do Tratado, pela equipe encarregada da
demarcação da fronteira. O “mais vizinho” recebeu o nome de Rio Santo Antônio. Um
mapa foi traçado e duas cópias desse mapa tornaram-se conhecidas. Uma, fiel ao
original, favorecia o Brasil/Portugal. A outra favorecia à Espanha/Argentina.2
Após várias tentativas mal sucedidas — a última havia sido o Tratado de
Montevidéu, de 1890, rejeitado pela Câmara dos Deputados brasileira —, Argentina
e Brasil concordaram em submeter-se ao arbitramento. Foi escolhido árbitro o
Presidente Grover Cleveland, dos E.U.A.
O Barão do Rio Branco foi indicado para chefiar a missão encarregada de
defender a causa do Brasil perante o árbitro. E o que fez ele? – O dever de casa. Em
carta a Rui Barbosa (Paris, 7 de julho de 1895), relata o trabalho de pesquisas
realizadas no Brasil, em Portugal e na Espanha. Produziu seis volumes. Em especial,
descobriu a cópia (não alterada) do mapa de 1759, carcomido de 136 anos. Diante
das evidências, Cleveland deu ganho de causa ao Brasil.
Na audiência solene em que a sentença foi lida, o negociador argentino
cumprimentou Rio Branco pelo “brilhante êxito que acabava de obter”. A essas
palavras, respondeu Rio Branco: “a vitória não é minha, nem do Brasil – é dos
mapas”.
Seguindo o exemplo do patrono da diplomacia brasileira, para obter êxito
na disputa entre defensores do meio ambiente e os que querem remover obstáculos
à expansão da área agrícola, é preciso fazer o dever de casa, levantar informações
relevantes e produzir mapas...
2 Fonte das informações sobre o tratado de fronteiras com a Argentina: Luciano Rodrigues CAMPOS, “A
controvérsia em torno do chamado Território das Missões”, disponível em www.webartigos.com (2007). A
existência de duas cópias diferentes do mapa não se pode concluir que tenha havido má-fé. Trabalhava-se em
terreno inexplorado. Rios tinham curso desconhecido, às vezes o mesmo rio era designado por mais de um nome.
Rio Branco deu-se ao trabalho de esclarecer os mal entendidos da geografia (CARVALHO, 1998).
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Os contendores em torno das reservas legais encontram-se em posição
semelhante à dos negociadores do Tratado de Madri: discutem sem ter informações
essenciais. Nesses termos, podem produzir muito calor, mas, dificilmente, alguma
luz. Melhor proveito fariam se produzissem mapas, mapas em escala adequada, nos
quais fossem apontados:
· entre os recursos ambientais ameaçados pela agricultura, quais a sociedade
brasileira considera que devam ser preservados, e a que custo;
· as áreas agrícolas, que, por suas características (a aptidão agrícola), o País não
se pode dar ao luxo de excluir do processo produtivo; e aquelas das quais poderá
abrir mão, em vista do menor custo econômico da produção que deixará de ser
realizada (custo de oportunidade);
· nas áreas destinadas à agricultura, as regras de manejo e tecnologias
poupadoras de recursos ambientais que serão exigidas;3
· as áreas em que os recursos naturais poderão ser explorados de forma
sustentável, mediante utilização de técnicas especiais de manejo, claramente
especificadas.
Tendo em mãos essas informações, as partes estarão em posição de
negociar objetivos, avaliar custos e opinar sobre quem haveria de pagar por eles. A
última providência seria a definição dos instrumentos indicados para induzir
comportamentos em linha com os objetivos acordados.
Os brasileiros, que se orgulham da exuberância de sua agricultura e
auferem os benefícios de alimentos baratos e da montanha de divisas gerada pelo
agronegócio, também desejam preservar o que resta de nosso meio ambiente. Há
um conflito de objetivos; o desafio é compatibilizá-los. Por isso, é inadequado falar-se
em política exclusivamente agrícola ou ambiental. Importa coordenarem-se as duas.
3 O dano causado ao meio ambiente pela agricultura tradicional é limitado a pouco mais que a substituição da
cobertura vegetal. Já a agricultura moderna, intensamente tecnificada, tem potencial destrutivo infinitamente
maior. Os maiores problemas ambientais decorrentes da agricultura originam-se no uso inadequado de
tecnologias. Problemas como erosão, perda da camada superior do solo, contaminação de corpos de água,
desertificação, salinização do solo e proliferação de pragas por desequilíbrio ecológico implicam a destruição de
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Coordenar políticas é uma das funções básicas da administração pública (Cunha,
2005).
Da mesma forma, é inadequado fiar-se em apenas uma classe de
instrumentos: comando e controle ou incentivos de mercado. Políticas ambientais
eficazes requerem a combinação das duas classes de instrumentos. A exploração de
recursos naturais constitui caso clássico de “falha de mercado” (Georgescu-Roegen,
1976), o que não quer dizer que se possa prescindir do uso de mecanismos de
mercado, como bem demonstra o bem sucedido caso do mercado de créditos de
carbono.4
Se nenhuma política pode prescindir de informações, muito menos poderá
a coordenação de políticas e a sintonização de instrumentos. A menos que o País
siga o exemplo do Barão, discussões desamparadas de informações só servirão
para avivar as chamas do conflito.
Diante da impossibilidade – e da inconveniência – de fazer-se cumprir a
lei, que se siga o exemplo de Dom Luís Antônio Furtado, o Visconde de Barbacena,
que, alertado por Joaquim Silvério dos Reis, mandou suspender a cobrança dos
quintos de ouro em atraso.
Referências
CAMPOS, L.R. A controvérsia em torno do Chamado Território das Missões. 2007.
Disponível em < www.webartigos.com >. Acesso em 22 set. 2009.
CARVALHO, C.D. História diplomática do Brasil. Coleção Memória Brasileira. Edição
Fac-similar do Senado Federal. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1959.
CUNHA, A.S. Oportunidades para a coordenação de políticas agrícolas e ambientais
no Brasil. CEPAL, Serie medio ambiente y desarrollo nº 108. Santiago de
Chile, outubro de 2005.
recursos naturais que advém de falhas de manejo ou de opção tecnológica. Daí a necessidade do cruzamento de
informações sobre aptidão agrícola e recomendação de tecnologia.
4 A Cota de Reserva Florestal (CRF), acrescentada ao Código Florestal (art. 44-B) pela MPV nº 2.166/67/01, é
uma forma de uso de um mecanismo de mercado para flexibilizar a exigência de reserva legal, com ganho para
todas as partes, em especial para o meio ambiente. Os efeitos benéficos da CRF serão potencializados se
combinados ao instituto da “servidão florestal”, de que trata o art. 44-A, do mesmo Código. É incompreensível
que o governo, até hoje, não tenha regulamentado esses dispositivos.
8
GEORGESCU-ROEGEN, N. Energy and economic myths. New York: Pergamon
Press, 1976.
Indicações de legislação relevante
Código Florestal Lei nº 4.771/1965. Substitui o antigo Código Florestal de 1934. O
Código de 1965 cria a Reserva Legal, só não lhe dá esse nome. O nome foi dado
pela Lei nº 7.803/1989, que altera o Código Florestal.
MPV nº 1.511/1996 – Eleva Reserva Legal na Amazônia a 80%. Foi reeditada
inúmeras vezes, acrescentando várias outras alterações ao Código Florestal, até a
edição atual (MPV 2.166-67/2001), quando se tornou permanente, por força da
Emenda Constitucional nº 32. O texto resultou de reuniões no âmbito do CONAMA,
como reação ao Projeto de Lei de Conversão do Deputado Micheletto, relator da
MPV 2166.
Lei nº 9.605/1998 – Lei dos crimes ambientais (prevê sanções para mau uso de
APP; desrespeitar RL não é tipificado como crime). Regulamentada pelo Decreto
3.179/1999, que fixou sanções por uso irregular e corte raso da reserva legal.
Alterado pelos Decretos nº 5.523/2005, que aumentou o valor da multa pelo
desmatamento a corte raso da RL, e 5.975/2006, que previa embargo das atividades
como sanção por desmatamento irregular.
Decreto 6.514/2008 – cria o dia da “derrama” e outras exigências. Reserva tem de
ser demarcada e georreferenciada. Exigência implica que propriedade esteja
regularizada. Em alguns estados, Ministério Público proíbe registro de escritura se
Lei não for obedecida.
Resolução CMN nº 3.545, de 29 de fevereiro de 2008 – Exige Certificado de
Cadastro e cumprimento da Legislação ambiental para concessão de crédito no
Bioma Amazônia (Manual de Crédito Rural).
O autor agradece aos colegas Ilídia da Ascenção Garrido Juras, Suely Mara
Vaz G. de Araújo e Luciano Gomes de Carvalho Pereira pelas inúmeras e bem
fundadas críticas a versão anterior desse trabalho
DESTAQUES:AGENCIA CAMARA

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