11.4.12

Reforma do Código Florestal: uma visão equilibrada


A reforma do Código Florestal se transformou em um dos mais contenciosos temas em debate na sociedade brasileira. As calorosas discussões no Congresso Nacional e por meio da mídia entre o deputado Aldo Rebelo, relator do texto aprovado na Câmara dos Deputados, e a ex-ministra Marina Silva, principal porta-voz daqueles que são contra a reforma, mostram o quão difícil seria negociar uma reforma que, antes de ser apresentada para votação no Congresso, fosse fruto de um consenso entre todas as partes interessadas.


Três grandes interesses estão em jogo na reforma do Código Florestal Brasileiro. O primeiro, representado – sobretudo – pelo discurso do deputado Aldo Rebelo, é do contingente de produtores para os quais as exigências do Código são incompatíveis com sua capacidade de geração de renda ou com a estrutura das suas propriedades. Equivale às classes pobre e muito pobre definidas por Alves (2011) – as quais representam 89% dos estabelecimentos rurais e 14% do valor da produção –, o cumprimento das exigências de Reserva Legal (RL), e mesmo de áreas de preservação permanente (APP), somente ocorrerá com subsídios governamentais. Foi pensando nesse grupo que o deputado Aldo (I) criou a consolidação da vegetação remanescente para fins de regularização de RL nas propriedades de até 4 módulos fiscais e (II) propôs um conjunto de alternativas para viabilizar a consolidação de atividades produtivas nas APPs. E, caso a recomposição seja necessária, esta poderá ser de 15 metros, e não de 30 metros, para os casos dos rios com até 10 metros de calha regular.

O segundo grupo interessado na reforma é formado pelos produtores responsáveis por grande parte da produção e da área utilizada. Fazendo novo paralelo com a classificação de Alves (2011), eles representam 11% dos estabelecimentos rurais e 86% do valor da produção (médios e ricos na classificação de renda bruta). A maior preocupação desse grupo é com regularização ambiental, porque são eles os mais visados pelo Ministério Público, sobretudo após a promulgação da lei de crimes ambientais e por conta dos potenciais impactos negativos que a recomposição de RL dentro da propriedade, e de certas APPs, poderia gerar sobre a produção existente.

Uma parte desse grupo demonstra resistência em investir na recomposição de APPs hídricas, sobretudo quando o passivo é elevado. Os dados de Sparovek (2011) indicam que a grande maioria das áreas com APPs antropizadas são ocupadas com pastagens. Considerando, ainda, que a recomposição de APPs na pecuária implica dois custos – de plantio e manutenção das mudas e de cercamento das áreas para impedir a entrada dos animais –, são os pecuaristas que se mostram mais defensores da consolidação. Além disso, eles argumentam que pastagens manejadas ajudam a conservar o solo e água, que são duas funções importantes das APPs. Embora discordemos do montante do déficit de RL estimado por IPEA (2011), o estudo, pelo menos, mostra que o déficit é generalizado e, nas propriedades de menor porte (abaixo de 4 módulos fiscais), mais relevante em relação à área total da propriedade (Nassar, 2011). Assim, a regularização e a consolidação são igualmente importantes para ambos os grupos. No grupo dos pobres e muito pobres, é importante porque estes não são capazes de investir na recomposição. No grupo dos médios e ricos, é fundamental para não levar a queda na produção.

O terceiro grupo interessado na reforma é composto pelos ambientalistas. Eles avaliam que a reforma do Código traz perdas ambientais maiores do que os benefícios econômicos e sociais da consolidação proposta no texto aprovado na Câmara. Os ambientalistas não reconhecem a necessidade da reforma para promover a regularização ambiental, pois afirmam que esta deveria ocorrer por meio da recomposição dos passivos e com base nos instrumentos já existentes no Código atual. No entanto, as posições entre ambientalistas não são absolutamente homogêneas. Algumas ONGs, sobretudo aquelas que atuam em projetos de regularização ambiental de propriedades e de implementação dos cadastros ambientais rurais (CAR), dão suporte à reforma, mesmo não concordando com partes do texto aprovado na Câmara. Em linhas gerais, tais ONGs discordam da consolidação de atividades produtivas em APPs e áreas de uso restrito, querem que a lei seja mais precisa para garantir que o CAR vai funcionar e não apoiam a ideia de dar flexibilidade para os estados definirem as regras dos programas de regularização ambiental (PRA), o que afeta diretamente a consolidação nas APPs.

Um quarto grupo que passou a se posicionar mais tardiamente no processo abrange os cientistas. A realidade é que as posições públicas apresentadas pela SBPC e ABC reforçam o posicionamento dos ambientalistas quando enfatizam os resultados das pesquisas que avaliaram impactos ambientais das atividades produtivas. As organizações praticamente não se posicionaram publicamente nas questões econômicas e sociais e optaram apenas pela abordagem ambiental. Dois argumentos têm sido extensamente utilizados pelos cientistas e replicados pelos ambientalistas.

O primeiro é que a não conformidade dos produtores (ou déficit) em relação às RLs poderia ser resolvida no contexto da lei atual sem a necessidade da reforma, sobretudo recompondo vegetação nativa em áreas consolidadas não aptas para produção agrícola (em geral, ocupadas com pastagens). Conceitualmente, tal argumento faz sentido desde que a compensação de RL possa ocorrer em um escopo geográfico mais amplo do que a microbacia (o que não é realidade no Código atual) e se o Brasil possuir um ótimo cadastro ambiental das propriedades, viabilizando um cruzamento das informações (outra situação inexistente no contexto do Código atual).

O segundo argumento decorre do estudo de Sparovek (op. cit.). O autor mostra que existem cerca de 60 milhões de ha ocupados com pastagens que são aptas para produção agrícola. Assim, toda a expansão futura previsível da produção agrícola poderia ocorrer nessas áreas de pastagens, sem prejuízo da produção de carne e leite. Tal argumento é utilizado por aqueles que contestam a necessidade da reforma e assumem que seus proponentes a defendem porque o Código atual seria uma restrição à expansão da produção. Conforme discutiremos a seguir, a reforma é necessária para regularizar as áreas consolidadas, e não para viabilizar a abertura de novas áreas.

Somos favoráveis a uma reforma equilibrada do Código Florestal, que possa: viabilizar a regularização dos produtores, permitir a consolidação de atividades produtivas e exigir a recomposição ou regeneração de vegetação nativa em APPs, salvaguardadas algumas exceções (espécies florestais, culturas lenhosas, perenes e de ciclo longo e agricultura de várzea). A reforma do Código Florestal é necessária porque trata-se de uma lei com baixa efetividade. Os déficits de APPs e RL são elevados, quando, na vigência desta lei, o Brasil bateu recordes de desmatamento na Amazônia. É uma lei avançada do ponto de vista das exigências de conservação sobre os produtores mas, ao mesmo tempo, com muitas dificuldades de sair do papel. A primeira razão para sua reforma é transformá-la em uma lei que será cumprida efetivamente a partir de sua promulgação.

A reforma precisa ser feita porque o Código atual exige a recuperação das RL dentro das propriedades, ou a compensação na mesma microbacia, o que levaria, dado o passivo de RL existente (Sparovek, op. cit.), a uma redução na área produtiva, acarretando em perdas econômicas para os consumidores e para as muitas regiões que dependem exclusivamente de atividades agrícolas. Contrariamente ao afirmado por alguns ambientalistas e cientistas, a reforma do Código não é defendida para liberar mais área para produção. Até porque o texto aprovado na Câmara não altera em nada as regras para abertura de novas áreas, nem mesmo nas APPs. Ela é defendida porque o Código corrente tem enorme potencial de deslocar área produtiva, resultando num efeito que ninguém quer: transformar em vegetação nativa áreas aptas e já utilizadas para produção.

A reforma é igualmente necessária para reduzir a insegurança jurídica que o Código atual traz aos produtores. Tendo em vista que o Código passou por inúmeras mudanças e aprimoramentos desde sua promulgação em 1965, muitas propriedades foram se tornando ilegais. Como em nenhuma das mudanças se concebeu o conceito de área consolidada com ocupação antrópica, como estabelecido pela versão aprovada na Câmara, qualquer ocupação da propriedade poderia torná-la ilegal caso possuísse déficit de RL. Ocupações antigas, anteriores à promulgação da lei, ou mesmo na sua vigência, mas em épocas em que o poder público pouco se importava com a efetividade da lei, poderiam colocar os produtores na ilegalidade.

Sem a reforma, a criação de um CAR é impraticável. O Estado brasileiro hoje desconhece o montante de RLs e de APPs nas propriedades privadas. A única referência oficial das áreas de vegetação natural ainda existente nas propriedades é o Link no Glossário Censo Agropecuário. A informação que consta do Censo, no entanto, é autodeclaratória e certamente não espelha a realidade. O Censo de 2006 indica que existem 50 milhões de ha dedicados a RLs e APPs nos estabelecimentos rurais. No entanto, apenas 1 milhão de estabelecimentos informaram os dados relativos a RL e APP. Isso representa 1/5 do total de estabelecimentos rurais do Brasil (o Censo aponta um total de 5,2 milhões de estabelecimentos). Mesmo que a informação esteja correta, ela cobre apenas uma parcela pequena do universo de propriedades rurais.

A ausência de tal informação coloca o Brasil no escuro para entender qual o nível de conformidade das propriedades rurais ao Código Florestal, atual ou o novo. E mesmo estudos independentes feitos com o objetivo de avaliar esse grau de conformidade chegam a conclusões diferentes (ver Sparovek op. cit. e The Nature Conservancy). É o CAR que vai sanar o nosso desconhecimento sobre o montante de vegetação natural existente nas propriedades e, por consequência, é o primeiro passo a fim de que elas sejam regularizadas. Para o cadastro ser abrangente, ou seja, cobrir todas as propriedades rurais brasileiras, é preciso viabilizar a regularização ambiental destas. As experiências de estados que criaram o cadastro rural mostram que, se as exigências de regularização são elevadas, os proprietários simplesmente optam por não informar os dados, sobretudo aqueles que estão com baixa conformidade com a lei. O cadastro do estado do estado de Mato Grosso, por exemplo, possui cerca de 6,6 mil propriedades, totalizando apenas 15% de toda a sua área passível de cadastramento.

O cadastro obrigatório, fundamental para se conhecer a situação ambiental das propriedades, jamais será abrangente se for utilizado como informação para impor sanções sobre os proprietários. Viabilizar a regularização ambiental das propriedades, portanto, é condição necessária para implantação de um cadastro que possa reunir informações cada vez mais detalhadas sobre áreas produtivas, degradadas, com vegetação nativa e outras ações ligadas à regularização.

O Código também precisa ser reformado para viabilizar a valoração da vegetação nativa protegida dentro das propriedades. No Código atual, APPs e RLs são colocadas como obrigação e, consequentemente, vistas apenas como custo pelos produtores. Uma reforma que crie as condições para o desenvolvimento de um mercado florestal, via compensação de RL através da chamada cota de reserva ambiental (como previsto pelo Código aprovado na Câmara) e pagamentos pelos Link no Glossário serviços ambientais gerados pelas APPs e RLs, mudará completamente a mentalidade dos produtores. A reforma pode criar um círculo virtuoso em que produtores com vegetação nativa além das suas necessidades de APP e RL possam comercializar tal excedente, e que produtores com déficit possam avaliar as vantagens da recomposição de RL vis-à-vis à compensação.

A visão equilibrada requer que a consolidação de atividades produtivas em APPs seja uma exceção, sobretudo nas matas ripárias. São inúmeros os estudos científicos que mostram os benefícios ambientais desse tipo de vegetação e dos corredores que elas criam, bem como o tipo de convivência aceitável entre atividades produtivas e vegetação natural, necessária para garantir conservação do solo, proteção da água e da Link no Glossário biodiversidade. O código aprovado na Câmara, em nossa opinião, endereça corretamente as situações de atividades florestais, culturas de espécies lenhosas, perenes ou de ciclo longo, que hoje ocupam APPs e precisam ser regularizadas, bem como as situações de agricultura praticada em várzeas, como o arroz. No entanto, diante da dificuldade de acomodar outras consolidações porventura legítimas, o texto acabou por flexibilizar demais, tornando a possibilidade de consolidação disponível para todas as atividades produtivas.

Quando compreendemos que 65% da vegetação natural ainda existente no Brasil está em áreas privadas, reconhecemos que é fundamental criar incentivos econômicos para estimular os proprietários a conservar além das exigências impostas pela lei. A regularização é o primeiro passo. Regularizar os produtores no Código atual, a despeito dos louváveis esforços de algumas ONGs em mostrar exemplos de sucesso de regularização, sempre será exceção. Defendemos uma reforma equilibrada do Código Florestal para que a conformidade seja a regra e a fim de que possamos aliar conservação ambiental com produção agrícola.

*André Meloni Nassar ( amnassar@iconebrasil.org.br) e Laura Barcellos Antoniazzi ( lantoniazzi@iconebrasil.org.br) são pesquisadores do Instituto de Estudos do Comércio de Negociações Internacionais (Icone) (www.iconebrasil.org.br) e da Rede de Conhecimento do Agro Brasileiro (RedeAgro) (www.redeagro.org.br)


Fonte: Redeagro

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